Vem. Vem
comigo nessa experiência meio voyeur
de observar essa criatura tão etérea e tão palpável. Não precisa se preocupar,
ela não vai se importar. Vou te contar um segredo: ela gosta de se imaginar
observada. Então, vem comigo e vamos observá-la enquanto pega o casaco pesado
no final do expediente e se despede de todos com um sorriso cheio de amor pelo
trabalho que faz.
Ela desce as
escadas com os passos firmes de quem anda com a cabeça nas nuvens. Quando o ar
frio toca a pele do rosto, ela respira fundo com o ar de satisfação de quem se
enche com uma nova lufada de vida. Preciso te contar outro segredo sobre ela:
andar no minuano gelado destas paragens do sul, embrulhada nos casacos que ela
acha um charme, é uma das paixões que ela cultiva.
Ela caminha
pelas ruas onde os carros e as pessoas parecem tão sofisticados e superiores e
ri por dentro. Observe-a com cuidado enquanto ela cruza a praça, murmurando com
um meio sorriso no rosto. Esse meio sorriso é teu, meu amigo. Esse meio sorriso
é pra ti, pela tua lembrança. Tu, que nem ao menos tem ideia da dádiva que
recebeste quando ela te dedicou a maciez daqueles pensamentos e daqueles
lábios.
Agora ela já
está passando em frente à pequena igreja, pensando só Deus sabe (sabe?) em quê.
Talvez ainda em ti. Em quais palavras dizer pra te capturar. Ao passar pelo
velho hotel, que talvez um dia fora grande, ela deixa que as recordações do
passado deem àquele olhar um brilho diferente. Tu já pudeste ver esse brilho,
quando deliberadamente tocou no nome dele. É um brilho misto de dor, saudade e
felicidade, tudo devidamente cicatrizado. E o tumulto do horário em que todos
voltam pra casa faz com que ela prolongue a parada em frente a esse palco de
memórias.
Mas... Ela
segue, e não podemos perdê-la de vista. Olhe para seus pés e seu sorriso
discreto enquanto atravessa os trilhos do trem sob a fraca iluminação das luzes
que ficaram pra trás. O vazio do lugar que ela passa agora contrasta
nitidamente com a multiplicidade que ela carrega dentro de si. Nada lá fora...
tudo acontece dentro dela.
Perceba,
companheiro, que na próxima esquina os ébrios se reúnem pra encher a cara e
esquecer que vivem. Nenhum deles a incomoda. Porque ela não é bonita. Ela é
poética. E a beleza do que é lírico não foi feita para todos os olhares. Tu
vês? Consegue sentir o poema que flui naquelas veias? E te pergunto, meu caro,
como tu consegues ser indiferente, quando tu também sabes que és o “tu”, o
“ele”, o alguém em cada poema dela?
Nesse
momento ela vive um pequeno êxtase. Estamos, eu, tu e ela, na parte alta da
cidade, de onde se descortina uma vista privilegiada. Ela adora ver as luzes da
cidade enquanto desce em direção à ela. Adora brincar mentalmente com as
metáforas que isso pode gerar. Ela gostaria que todos percebessem que às vezes
descer pode significar iluminação. Ou que não basta ver as luzes e continuar
distante delas. E porque ela sabe disso, segue sem medo na direção das luzes.
Passa por
casas muito ricas... Mas agora vou te contar mais um segredo sobre ela.
Enquanto isso acontece, ela pensa numa casa feita de sonhos entre muitas
árvores, com a tinta descascando e fumaça na chaminé. O abandono quase a
convida.
Nessa
descida para o centro das luzes, passa pela pequena loja onde os olhos de um
marido que não é seu a observam disfarçadamente. Ela sabe. E talvez até goste,
embora não confessará jamais. O que ela te diz sem medo é que esses olhares não
fazem a menor diferença quando os devaneios dela são povoados pelos teus
olhares, que ofertas a outrem.
Vês, amigo,
ali naquela esquina? Eu sei. Agora não há nada. Mas houve. Casa, família, vida.
E depois houve o fogo. Ela não saberia te dizer se a agrada mais imaginar a
doce rotina de um lar que já não existe ou a imagem sedutora das chamas. Estamos
quase chegando ao destino final dessa nossa curta viagem. Enquanto alguns
poucos automóveis transitam pela rua quase esquecida, ela quase nada vê. Porque
se deixa seduzir pela neblina ao longe e pelo movimento dos cachos de seu
próprio cabelo.
Ela atende
com indignação uma ligação, e você pode ouvir sua impaciência quando lhe cobram
dez minutos de atraso. Amor e preocupação? Ela vai chamar de falta de
liberdade, tu bem o sabes. Está na esquina do conforto doméstico e já começa a
sentir a cobrança. Mas, por enquanto, ainda tem o ar gélido do inverno do sul
pra acariciar suavemente o rosto.
Abre o
portão alto, pensado para dar aquela fictícia sensação de segurança, e
atravessa com passos leves sobre o gramado, como quem anda sobre fadas. Abre a
porta e tu podes ouvir daqui o cumprimento alegre de quem retorna à casa.
Aqui, meu
caro, nós a deixaremos. Porque já fomos longe na nossa viagem voyeur mundo afora e coração a dentro.
Mas, quero te contar um último segredo. Que tu já sabes. Ela está em casa...
Mas te dirias num sorriso agridoce: “meu lar é onde o vento sopra”.